- Museu do Neo-Realismo
- Exposições
- Pedro Cabral Santo - The Return of the Real
Curadoria: David Santos
Pedro (Cabral Santo) e o lobo
"A questão do devir da linguagem atravessa desde sempre, com coerente persistência, o percurso intelectual e a obra artística de Pedro Cabral Santo. Da instalação ao vídeo, a sua acção centra-se no domínio de uma ficção de características deceptivas, buscando a desconstrução da constância acrítica produzida pelo excesso imagético da nossa contemporaneidade. Daí são retiradas curiosas histórias, personagens e ambientes, marcados muitas vezes pelo improvável diálogo entre seres cultural e morfologicamente híbridos, quase irreais, mas paradoxalmente reconhecíveis ou mesmo até familiares. É essa estranheza íntima e familiar que reage em nós de um modo fecundo, alimentando ainda uma identificação alternativa acerca do que somos, ou no que nos tornámos.
Revelado no início dos anos 90, Pedro Cabral Santo é hoje um dos artistas mais relevantes do meio artístico nacional. Depois de várias exposições colectivas realizadas nos principais espaços de exposição alternativos do nosso País, o artista apresentou recentemente no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian a sua mais importante exposição individual até ao momento. “Tilt”, assim se chamava a mostra, reuniu então alguns dos trabalhos mais significativos dessa investigação que toma como objecto de estudo e criatividade os curto-circuitos verificados entre os significados e os seres humanos homogeneizados pela era do simulacro.
De um modo geral, podemos afirmar que a efectivação da obra de Cabral Santo se processa na exploração de um território sempre móvel e inevitavelmente estabelecido entre a palavra e a imagem. O jogo que dessa leitura resulta envolve-nos numa teia de significados centrípetos, repletos de poder e identidade comum que nos mantém ligados, apesar da insinuante e omnipresente atmosfera deceptiva, ao discurso produzido.
Este dispositivo dialogante exerce assim uma espécie de atracção mínima junto do receptor da obra de arte. É justamente este subtil exercício de ínfima atracção que permite a Pedro Cabral Santo avançar o compromisso essencial do seu projecto artístico, isto é, o trânsito de sentidos entre palavras e imagens. Estas não são entendidas aqui como unidades independentes, mas como elementos de um sistema conjunto que procura criar uma espécie de absurdo de comunicação, mantendo todavia um elo essencial de ligação e sentido que atrai o observador até ao final do exercício de receptividade.
Também deste modo podemos entender o dispositivo de atracção construído como metáfora ou ideia de ligação à moral da história de “Pedro e o Lobo”, narrativa infantil que inspira o título da presente intervenção de Pedro Cabral Santo no Museu do Neo-Realismo. Expondo uma escultura suspensa – um lápis azul, precisamente intitulado Ponto Azul – e uma vídeo-instalação intitulada The Ice Cream from Space #2, espécie de odisseia de um gelado que cai na terra e começa imediatamente a derreter, depois de iniciado um inesperado diálogo com uma voz sem imagem, pura manifestação da linguagem em aproximação à ideia de Deus e à sua palavra. Não esqueçamos que no Antigo Testamento Deus falava aos humanos, procurando guiar-lhes a fé, em direcção ao culto da transcendência, precisamente porque esta não produz nem deseja produzir qualquer imagem, pois esta é o poço da ambiguidade disfarçada de estabilidade sígnica. Nesse contexto são as palavras que constituem a raiz do sentido divino, a sua credibilidade e persuasão.
No diálogo do gelado com a voz ambígua deste pequeno filme, Pedro Cabral Santo remete-nos para uma premente analogia entre a inocência risível e a letargia social dos nossos tempos. Entre a evocação da censura durante o Estado Novo, personificada no lápis suspenso no átrio do museu, e o estranho diálogo encetado com recurso à visualização no ecrã das palavras ditas ou ecoadas, o artista questiona subtilmente os valores da nossa contemporaneidade, bem como os sintomas de uma censura dissimulada ou sem rosto, actualizando assim a moral da história infantil que lhe serviu de inspiração.
Despido de qualquer Pathos ou solenidade, o diálogo a que assistimos produz no entanto um sentido de coerente análise, ainda que indirecta ou metafórica, sobre as circunstâncias actuais da nossa cultura e os seus sistemas subterrâneos de vigilância e censura. Na metáfora do “factor sol” que actua invariavelmente sobre o pobre gelado, cada vez mais derretido e sem fôlego, a voz escusa-se progressivamente a desencadear qualquer plano para o salvar, mesmo depois de tentar averiguar que espécie de gelado é esse que fala consigo. Será um gelado de cariz cientista? O gelado responde negativamente, afirmando que é um “gelado-artista” que trabalha com a palavra quente (hot). No original de Pedro Cabral Santo o gelado confessa: “On my planet I play around with the Word ‘hot’, can you imagine the paradox”[1]. A confissão do gelado de que trabalha com palavras vai merecer um comentário que pode ser lido ainda enquanto associação ou alegoria acerca do meio artístico português. A voz responde então ao gelado: “You play with a word! Humm… it’s very different up here”. A que o gelado não resiste a perguntar: “How different? There aren’t any artists on earth?”. A voz é peremptória: “Of course – what are you thinking! But they are more… expansive, I think”[2]. Este diálogo progride então na descoberta de uma impossível salvação do gelado que, aos poucos, derrete, sem contudo perder a esperança numa saída do planeta terra para regressar às suas origens, pois aqui rapidamente se transformará em nada, à luz do sol, espécie de analogia com a luz da ribalta que envolve uma obsessão dos humanos: o reconhecimento do seu valor. Já na fase final do diálogo, o gelado pergunta: “In your opinion, am I dying?”. À qual a voz responde com máxima ironia: “Solar sunspots must be affecting your head! Imagine an artist who works with the word ‘hot’?”. O gelado suplica uma vez mais: “Please, yes or no?”. A voz responde-lhe então com alguma sinceridade: “… Yes – but look on the bright side – you are na artist so after your death, your work will be around thousands of stars like the Sun in the Milky Way? And, best of all, the Sun make noise as it burns”[3]..."