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- Paulo Mendes - The Return of the Real
Curadoria: David Santos "Uma memória silenciada conduz necessariamente ao colapso da consciência e, por conseguinte, da acção cívica e política. Por oposição, manter vivo o passado, mesmo ou sobretudo as suas imagens e leituras mais angustiantes, poderá assegurar-nos uma compreensão essencial sobre essa arqueologia genealógica que define também, de algum modo, a nossa própria identidade. Com efeito, é mais perigoso esconder a “imagem do mal” do que mantê-la preventivamente presente. Só desse modo poderemos manter-nos atentos e vigilantes quanto àquilo que não desejamos que volte a fazer parte da vida da nossa sociedade. Esse é o propósito fundamental de “S de Saudade”, projecto reificado a cada exposição, em que Paulo Mendes recorre à complementaridade do exercício fotográfico e pictórico para questionar o papel das artes plásticas na representação do poder político. Ou, de outro modo, o artista pretenderá aqui experimentar os efeitos díspares desses retratos mais ou menos oficiais que determinam a imagem ou o ícone de figuras decisivas da nossa história recente, em particular a figura tutelar do século XX português, o ditador Oliveira Salazar. O poder imagético de um personagem como Salazar teve ao longo de mais de quatro décadas um valor extraordinário, inclusive de incontornável omnipresença, na vida dos portugueses, e que coincidiu naturalmente com a própria vida do ditador e do Estado Novo. Porém, após o 25 de Abril de 1974, toda essa iconografia caiu no esquecimento quase absoluto por razões políticas de todos conhecidas, para recentemente voltar em força, ainda que pelos mais diversos e por vezes opostos motivos sociais e políticos. Há historiadores, politólogos, filósofos ou sociólogos que reinvestem na análise da iconografia de Salazar para efeitos de estudo e compreensão de um fenómeno político que urge conhecer a fundo. Há publicitários que usam essas imagens com a leveza de uma incauta reabilitação. Há ainda políticos, investigadores e outros saudosistas interessados igualmente numa mais estruturada recuperação da imagem do ditador com o objectivo de uma hipotética reabilitação histórica e política do mesmo. Diga-se desde já que em nenhum destes quadrantes se situa o projecto artístico de Paulo Mendes. Apesar do título convocar a palavra “saudade”, mantendo assim uma subtil ambiguidade de interpretação, o que o mobiliza é precisamente uma perspectiva crítica sobre as relações das artes visuais com a fixação do paradigma imagético de Salazar. No fundo, o artista recupera toda uma memória esquecida para procurar saber, afinal, que valor iconográfico e de relevância política podemos hoje retirar dos retratos de Salazar? E foram na verdade muitos os retratos a óleo realizados ao longo do Estado Novo que representam em pose de estado o antigo Presidente do Conselho de Ministros. Como o próprio artista nos adianta, “ultrapassadas pelo avanço da história, essas representações estão agora armazenadas em esquecidos acervos de museu, em centros de documentação ou em arquivos de televisão, como adereços ou fragmentos de uma peça fora de cena. Numa sociedade de brandos costumes, este lento apagar da memória corresponde a uma amnésia colectiva”[1]. Uma vez mais, a crítica sobre o desvanecimento da memória resulta no trabalho de Paulo Mendes como sentido criativo de uma maior consciencialização política e social, pois manter a invisibilidade do ditador e do Estado Novo – ou erguer paradoxalmente, como hoje muitas vezes acontece, um imaginário acrítico – é uma outra maneira de confirmar a natureza de um povo demasiado passivo e inoperante. Neste sentido, Salazar foi também o resultado do atavismo dos portugueses, a personificação de um país rural, tradicionalista e conservador. Um dos problemas de sempre em torno da figura de Salazar, inclusive durante o seu longo mandato, diz respeito ao retrato, ou seja, à imagem que o ditador deu de si para a opinião pública. Esfíngica figura, inerte no seu simbólico e literal imobilismo, Salazar cultivou o distanciamento em relação ao próprio País, assumindo-se como sacerdote salvador e condutor dos seus destinos. Quer na pose exibida nos quadros pintados e fotografias oficiais, quer nas raras entrevistas concedidas a um grupo restrito de jornalistas, Salazar demonstrou sempre um controlo quase absoluto sobre a imagem pública que pretendia passar. A fama de reservado, de pouco dado a mundanidades, criou assim o mito de uma figura inacessível, excepcionalmente invisível, mas sempre omnipresente. Esse facto funcionou inclusive a favor da sua perpetuação no poder. Segundo o filósofo José Gil, “a invisibilidade constitui o próprio estado de Salazar. Ele é invisível e quer-se como tal. Só raramente se mostra em público e ainda menos em manifestações de massas. A sua pessoa física, a sua presença corporal não se expõem aos olhares […] E este nome, Oliveira Salazar, […] começou a diminuir-se, a encurtar-se, até se engrandecer na sua redução à expressão mais simples, até ficar sintetizado nesta palavra sonora Salazar. Esse nome, com essas letras, quase deixou de pertencer a um homem para significar o estado de espírito dum país…”[2]. A mutua identificação entre Salazar e Portugal levou a que no período revolucionário do pós-25 de Abril e mesmo na fase de consolidação do processo democrático todos os esforços de libertação desse período sombrio tivessem por base uma espécie de ocultação das imagens do ditador, como se a memória visual pudesse de algum modo ser para sempre apagada. Depois de uma eufórica recusa, Salazar voltou aos poucos a fazer parte da memória de um país, ainda que atingindo o paroxismo protagonista de um concurso absurdo que o elevou a figura mais importante da nossa história. Esse foi um sinal mais de que tentar esconder é o pior dos caminhos quando se pretende exorcizar o mal, pois enfrentá-lo de uma perspectiva crítica é manter activa uma memória necessária, útil no seu esforço de consciencialização sobre os valores alternativos que se lhe opuseram. Não esqueçamos que também já fazem parte da memória histórica alguns dos factores que contribuíram para uma oposição a Salazar. À falta de liberdade de associação, o Portugal de hoje responde com a maturidade de um sistema democrático que só não é mais participado porque o individualismo materialista se instalou progressivamente entre a maioria da população. Á censura, responde o Portugal de hoje com uma comunicação social que derruba ministros ao escalpelizar obsessivamente todo o seu passado social, político e cívico. Por isso, Portugal mudou, e as novas gerações têm hoje necessariamente uma relação mais distanciada com aquilo que significou o Estado Novo e os sacrifícios por que passaram todos aqueles que, em condições bastante adversas, lutaram pela liberdade e pelo pleno exercício da cidadania. Na verdade, tal como nos lembra Eduardo Lourenço, “só temos o passado à nossa disposição. É com ele que imaginamos o futuro”. Mas do passado não possuímos apenas o que mais valorizamos."