- Museu do Neo-Realismo
- Exposições
- O Neo-Realismo e a República
Curadoria de David Santos
"Tal como certos sectores republicanos, o movimento cultural neo-realista congregou algumas das vozes mais incómodas ao regime do Estado Novo. Por si só, a declarada oposição à ditadura, a perseguição e o ostracismo a que, por essa razão, foram votados desde cedo pelo regime salazarista aproximariam, desde logo, republicanos e neo-realistas, ajudando assim a promover ideias e acções comuns. Mas, apesar da união de esforços, por exemplo, em torno da candidatura do General Norton de Matos às Presidenciais de 1949, e de outros episódios pontuais de solidariedade ou identificação cívica e política, a verdade é que a reivindicação do legado republicano só em parte foi assumida de modo inequívoco pelos escritores e artistas neo-realistas, até porque, não esqueçamos, para além da partilha de valores comuns – como a Democracia, a liberdade individual e associativa, de expressão ou de pensamento – havia diferenças no código genético dos dois movimentos que os colocava em lados distintos dessa batalha, pois o parlamentarismo instituído na I República representava, no essencial, a ascensão ao poder por parte da burguesia, enquanto o marxismo e a luta pelo poder das classes trabalhadoras formavam as referências essenciais da cultura neo-realista. Ainda assim, entre as orientações políticas e sociais da I República e a linha de pensamento humanista do neo-realismo encontramos alguns elos que marcam uma matriz identitária em muitos aspectos comum, destacando-se, entre eles, a crença na ascensão social das classes mais desfavorecidas ou a consciencialização e o incitamento à participação dos portugueses na vida política através do exercício da cidadania. Por outro lado, escritores, intelectuais e cientistas oposicionistas, declaradamente republicanos, tais como Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, José Rodrigues Miguéis, Bento de Jesus Caraça ou Abel Salazar, constituíram referência ética e política fundamental para os jovens que viriam a fundar o neo-realismo literário português. Para mais, publicações como a “Seara Nova” ou “Sol Nascente” assistiram a uma partilha e oposição de ideias entre republicanos e neo-realistas que as tornaram espaços privilegiados de opinião e pensamento, situando-se todos, firmemente, na linha de oposição ao salazarismo.
Podemos afirmar ainda que, apesar de algumas reservas relativamente a certos aspectos da acção política da I República, a consideração dos seus valores universalistas em prol da igualdade e do progresso representaram para o neo-realismo uma referência incontornável na esperança de uma transformação do regime político português.
Esta pequena exposição documental não pretende evocar de um modo directo a implantação da República, muito menos narrar os seus episódios fundamentais, mas antes dar a conhecer as relações estabelecidas entre o movimento neo-realista e a memória desse período político, a todos os títulos decisivo para o Portugal contemporâneo. São por isso aqui apresentados alguns documentos (cartas, fotografias, livros, artigos, programas ou objectos) que integram os espólios à guarda do Museu do Neo-Realismo e que clarificam algumas das particularidades dessa relação não linear registada ao longo de décadas entre “O Neo-Realismo e a República”. Da apologia republicana publicada por António Ramos de Almeida em torno da figura de Bernardino Machado ao postal desenhado por Júlio Pomar em 1946, aquando do 36º aniversário da proclamação da República, passando pelo artigo de Maria Lamas evocando as leis da I República em prol das mulheres, ou ainda o número especial publicado pela “Seara Nova”, que contou com um desenho de Lima de Freitas alusivo à comemoração dos cinquenta anos da República, são vários os documentos que aproximam o visitante desta exposição do ideário republicano e da sua abertura à cidadania, expressão máxima dos seus intentos de transformação progressista – de que agora se comemora o primeiro centenário. Filtrado pela relação com o oposicionismo neo-realista, esta é assim a modesta homenagem que o Museu do Neo-Realismo presta à memória da I República, lembrando aqui que, para lá das acções negativas que também a caracterizaram ao longos dos seus conturbados 16 anos de vida, há uma ideia de participação livre e pluralista na vida política, assim como um conjunto de iniciativas legislativas a favor do desenvolvimento do nosso país que são incomparáveis com o atavismo agónico da monarquia constitucional ou com o silenciamento da cidadania promovido pelo Estado Novo. E porque as imagens e a sua simbologia também contam em todo este processo, lembramos que no centro do Parlamento Português, onde antes se vislumbrava um quadro do Rei, encontra-se até hoje, depois da revolução de 5 de Outubro de 1910, uma estátua da República. Ou seja, do individual para o abstracto, revela-se a força da alegoria que representa um colectivo, uma nação, essa res publica (coisa pública) que a todos diz respeito."