- Museu do Neo-Realismo
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- José Maçãs de Carvalho - The Return of the Real
Curadoria: David Santos
Quando a arte não é só arte
"Desde Aristóteles que toda a acção humana tem consequências e motivações de leitura necessariamente política[1]. Não obstante, a arte pareceu durante muito tempo absorta dessa dimensão deliberadamente comprometida com os desígnios políticos da humanidade, encontrando na expressão sensorial dos sentimentos e das emoções um universo maior de comunicação. Apesar de alguns episódios identificados no passado renascentista ou neo-clássico europeu, só ao longo do influente e extraordinário século XIX, e na esteira de empenho integral que significa o gesto cultural do romantismo, a arte envolver-se-ia com os valores de esperança e intervenção no conjunto dos destinos da sociedade. Inspirada pelas vanguardas político-revolucionárias de meados do século XIX, a arte tornar-se-ia progressivamente independente da sua condição decorativa, até aí ligada à manifestação do gosto burguês e a aristocrata, para se converter justamente num instrumento crítico de incidência directa sobre a realidade social, com a intenção deliberada de a transformar. Esta ideia de uma praxis artística comprometida, de envolvimento político-social, teve ainda ao longo do século XX vários desenvolvimentos que a tornaram mais complexa e exigente ao nível do processo de significação, comunicando não apenas no domínio do sensorial, mas estendendo ainda o seu raio de acção à conceptualidade promovida pela linguagem. Com efeito, desde Marcel Duchamp que a palavra exerceu uma decisiva viragem linguística no universo da criatividade visual. Hoje, são múltiplos os reflexos desse cruzamento fundamentalmente enriquecedor da experiência da arte, com destaque para a produção de uma criatividade que não abdica de uma espécie particular de consciencialização social, onde a palavra e a imagem agem numa interdependência maior e indissociável.
Herdeiro em parte deste contexto, e desde pelo menos os projectos “Traveller Cheque” (1996) e “Hotline” (1997-98) que o trabalho artístico de José Maçãs de Carvalho (Anadia, 1960) tem vindo a reflectir, interferindo com base numa acção interdisciplinar e disseminadora, sobre as relações de dependência e contaminação entre o processo criativo, a imagem e a linguagem, operando, a partir desses conceitos, uma espécie de análise crítica em torno da fragmentação e virtualização deceptiva do real contemporâneo. Na verdade, José Maçãs de Carvalho é um dos artistas portugueses que mais tem insistido na revalorização da palavra como arma de perturbação ou questionamento sobre os regimes discursivos que enformam os sistemas de comunicação e a sua relação com o poder. Perante o paroxismo visual contemporâneo, o artista usa a sedução do “inimigo” para manter activa a função da linguagem. Os dois trabalhos agora apresentados confirmam essa reflexão sobre as relações de dependência e contaminação entre a imagem e a linguagem. Partindo desse prisma, o artista opera uma espécie de análise crítica em torno da fragmentação e virtualização deceptiva do real contemporâneo. O seu trabalho tende, por isso, a reflectir situações de comunicação-limite, dessa forma evocando o paradoxo de uma incomunicabilidade que se repercute como desafio à receptividade do espectador, obrigando-o frequentemente a uma tomada de posição activa e consciente.
Por exemplo, no vídeo “To President (drinking version)” (2005-2007), que cita uma famosa cena cinematográfica na qual a personagem interpretada por Marilyn Monroe brinda com uma taça de champagne, o artista manipula o sentido original desse momento, repetindo-o incessantemente, ao apropriar-se da imagem para a deslocar para uma espécie de brinde indiferenciado a todos os líderes mundiais da actualidade, como metáfora de uma embriaguez crescente e inevitável que, apesar de associada a esse ícone do glamour de Hollywood, se reflecte em nós próprios enquanto espectadores desse espectáculo global que significa a chamada realpolitik. Embriagados pela massificação das notícias e das imagens a elas associadas, permanecemos imóveis e quase sempre indiferentes ao curso da história e da acção política[2]. A paradoxal embriaguez a que Marilyn faz inadvertidamente referência lembra-nos ainda que “the show must go on”, tanto na política, como na arte ou nas imagens que produzem a percepção da nossa contemporaneidade. Os sucessivos brindes que José Maçãs de Carvalho projecta na figura de Marilyn suscitam assim no observador um sorriso imediato que logo se transforma em tomada de consciência sobre o grande marketing que hoje envolve a diplomacia política, como se tudo não passasse de uma festa em que todos participam para manter o seu próprio poder. O resultado é esse contínuo de celebração efusiva, como se não houvesse consequências a tirar das decisões políticas e os nomes dos líderes mundiais pudessem afinal figurar numa qualquer película de modelo hollywoodiano[3]. A fusão espectacular que aqui está implícita não é de todo da ordem do ficcional, basta lembrar os famosos casos mediáticos da própria Marilyn com o presidente J. F. Kennedy, o caso de Bill Clinton com a sua assessora Mónica Lewinsky, ou mais recentemente o exibicionismo da relação de Sarkozy com a modelo e cantora Carla Bruni. O grande espectáculo é, afinal, a televisão e mundo mediático. Tudo o que nele se revela e reproduz acaba por funcionar como pólo de atracção, não só imagético como real, de pessoas e mensagens só aparentemente distantes entre si. Afinal, são todos eles figuras mediáticas e é isso que as aproxima tão inevitável e drasticamente, como o mito de Ícaro. De outro modo, este trabalho confirma a eficácia com que o artista trabalha esse eficaz registo dialéctico entre a sedução visual da imagem e o poder desestruturante da palavra desse modo associada. Com efeito, é essa espécie de fricção linguística que impede o apogeu contemplativo da imagem e do seu sentido exclusivamente estético ou acrítico. Há deste modo uma decepção do expectável que funciona como antídoto à indiferença, projectando assim uma hipótese não forçada de experiência reflexiva mais fecunda. O gesto de comunicação-limite a que “To President” faz alusão resulta assim como investimento num processo de ligação entre a arte, a sua leitura política, e uma tranquila sedução da consciência do observador..."