- Museu do Neo-Realismo
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- Alice Geirinhas - The Return of the Real
Curadoria: David Santos
"Ce sexe qui n'en est pas un
Mulheres radicais e uma metáfora de cristal
Não é uma questão de paridade, mas antes de oportunidade. Alice Geirinhas (Évora, 1964) reivindica com o seu trabalho uma chance maior para as mulheres, o seu reconhecimento e valorização, sem cair no discurso feminista mais radical ou monolítico, ainda que as referências teóricas e culturais desse posicionamento não sejam evitadas, mas precisamente reavaliadas no ajustamento a um projecto artístico particular e único.
No contexto social contemporâneo, a mulher sofre ainda uma subtil e por vezes dissimulada perseguição sexista, seja em casa, no local de trabalho, no espaço público ou na própria comunidade onde mais naturalmente se insere. Se, por um lado, os modelos sociais vigentes, apoiados numa vaga e sobretudo inoperante leitura ou consideração do “outro”, parecem querer afirmar um novo milénio sem discriminações de género, acentuando a ascensão das mulheres a lugares de decisão e poder, por outro, percebemos que esse esforço de nivelamento igualitário resulta no essencial de um regime de excepção, não conseguindo sequer atingir níveis significativos de equilíbrio na distribuição de tarefas simples e quotidianas, tanto na sua expressão doméstica como em termos profissionais. Com efeito, a esmagadora maioria das mulheres – referindo-nos aqui apenas à realidade ocidental, pois por outras paragens o desequilíbrio é ainda maior ou, na melhor das hipóteses, incompreendido – está muito longe desses exemplos de sucesso profissional e competitividade com a hegemonia masculina que as revistas mais cosmopolitas procuram sublinhar. Apesar das listas da Forbes anunciarem já, numa espécie de falsa paridade, os nomes das cem mulheres mais influentes do mundo, procurando assim fazer o paralelo com a famosa listas dos homens mais decisivos do nosso planeta, na verdade, os sintomas que infelizmente permanecem como referência para a maior parte das mulheres nestes primeiros anos do novo século são ainda os da violência doméstica, da discriminação e exploração generalizada do seu trabalho, quando não mesmo do seu corpo e da sua própria dignidade humana. Na vida nocturna, na agricultura, nas fábricas ou nos serviços, muitas mulheres servem ainda, incontornavelmente, a uma manipulação lucrativa de alguns homens sem escrúpulos, que vêem nas mulheres um instrumento financeiro de proveito fácil, baseado na imoralidade e ao mesmo tempo na escassa fiscalização destas situações, pouco mediatizadas e, até certo ponto, culturalmente aceites por uma espécie de maioria silenciosa. Na verdade, um manto de vergonha e silêncio ajuda a manter inalterada esta desequilibrada relação de forças. Aliás, o silêncio que hoje se reproduz, como se nada fosse, é experimentado por um consentimento que dispensa alternativas de teor consciencioso. Forçadas, ou de modo voluntário, são as próprias mulheres a abdicar muitas vezes dos seus direitos, submetendo-se, como espécie de inconsciente auto-censura, aos ditames daqueles que detêm o poder da empregabilidade, da gestão de recursos humanos ou de qualquer outra área que envolva a convocação e dispensa de mão de obra feminina. Inclusive no âmbito do trabalho qualificado, as mulheres têm muitas vezes de provar de forma redobrada o seu valor e competência, procurando defender a sua qualidade no quadro de um jogo de regras muitas vezes viciadas, responsável afinal por uma espécie de perpetuação do stato quo, isto é, do poder masculino.
Determinada em parte por esta análise, Alice Geirinhas insiste num trabalho criativo de compromisso com uma exposição não panfletária da condição feminina, suas conquistas e derrotas, hesitações e progressos. Para lá dessa matriz de orientação e empenho, ela revela-nos este estado de coisas com um sentido crítico assinalável, pleno de metáforas subtis, humor e jogos de linguagem que perturbam a nossa ordem de ideias e leituras sobre o lugar e o estatuto da mulher contemporânea. Pobres ou ricas, ocidentais, africanas ou de outro canto do mundo, confiantes ou angustiadas, as mulheres reveladas nos desenhos e performances de Alice Geirinhas são demasiado humanas e, por isso, imediatamente adoptadas pelo observador. Mas, ao mesmo tempo, essas mulheres são sobretudo ícones de papel acentuados pelo contraste das não cores, o preto e o branco, como se tudo não passasse apenas, na realidade, de um registo de intenções e revolta. Na exploração do seu traço deliberadamente gráfico, quase rude nessa tarefa de comunicação mais directa e eficaz, os seus desenhos lembram também de um modo muito particular a ilustração associada à tradição popular da literatura de cordel e ainda as xilogravuras expressionistas do início do século XX. Só que, desta vez, o tema não é a paixão explosiva pelo inconsciente ou o primitivismo civilizacional, mas a ironia da complexidade subjacente à mulher, da sua auto-estima e valor associado às dificuldades da sua afirmação num mundo que insiste em ignorar o contributo específico do universo feminino para a longa história da humanidade. A artista defende assim que só atendendo a um conjunto de valores de inspiração feminista poderemos desconstruir eficazmente, num contexto já pós-feminista, o “falogocentrismo” dominante de que falava Jacques Derrida [1].
Para tal, e partindo da teoria da diferença sexual apresentada nos anos 60 pela filósofa e psicanalista Luce Irigaray, uma das criadoras do conceito écriture feminine, determinante no chamado “feminismo da diferença” [2], Alice Geirinhas desenvolve em Ce Sexe qui n’en est pas un (título tomado da tese de Irigaray com o mesmo nome) um projecto artístico que cruza, de novo, a performance e o desenho (entre a ilustração e a BD, a cultura erudita e os referentes populares de um mundo mediático que nos oferece todos os dias imagens de sofrimento e heroicidade), criando desta vez uma teia de vestígios sobre a importância do nome feminino na identificação de uma acção política concreta. A simbologia da maternidade, associada à inscrição de um combate clandestino pela valorização das minorias e dos seus sacrifícios, reproduz deliberadamente um efeito de comunicabilidade residual, convertendo a palavra, entre o seu valor fonético e sígnico, num mapa indiferenciado que só no limite alcança significado específico. Interpretadas por uns como mulheres terroristas que perdem o respeito pela sua vida e a dos seus semelhantes, e, por outros, como heroínas de um combate decisivo entre o bem e o mal, as mulheres desta série de desenhos de Alice Geirinhas são simultaneamente mães e seres radicalmente politizados, mesmo que na inocência de um fraco conhecimento dessas duas realidades, entre o familiar, intimo e afectuoso, e o racional extremado por palavras de ordem que fazem estremecer o seu equilíbrio existencial..."